Do centro da vila, levava cerca de 15 minutos no tuk-tuk(*) por uma estrada
muito esburacada para chegar ao “paraíso ecológico”. O caminho estava em tão
mau estado que o motorista nem conseguiu chegar até a entrada; nos deixou no meio da estradinha de terra para seguirmos a pé até nosso destino.
A pousada, mantida a energia solar, fica no meio do Parque Nacional de
Kep, num lugar chamado Jasmine Valley (Vale do Jasmim). Ao chegar, recebi uma
limonada geladíssima, perfeita para aquele calor de 35oC . Enquanto
desfrutava da bebida, ouvi uma conversa agitada na cozinha que aos poucos foi
se transformando em um alvoroço: umas meninas gritavam, outra chegou correndo
com uma vassoura, e outras acalmavam as mais nervosas. Não sei o que
encontraram, mas imagino que tenham visto alguma coisa muito assustadora;
afinal são todas locais e já deviam estar acostumadas, não é? Contive minha
curiosidade e não perguntei nada. A pobre recepcionista depois chegou, se
sentou bem tranquila como se nada tivesse acontecido e somente lançou um olhar
em minha direção, para juntas compartilhamos um tímido sorriso.
Escondidos em meio a uma vegetação exuberante, espaçosos chalés de sapé
e cabanas de madeira no topo das árvores esperam por seus hóspedes. Meu chalé era
bem rústico, mas muito charmoso – a cama com estrutura de bambu, coberta com os
famosos tecidos do Camboja, era super confortável e isso era o mais importante.
Para o chuveiro com água fria eu teria que mudar o horário do meu banho; água
gelada já ao levantar não dá para encarar, mas é uma delícia depois de uma
longa caminhada num dia quente. Ah, que prazer ver pela janela meu mundo lá
fora todo pintado de verde! Mas uma cartinha de boas-vindas no quarto me
deixou um pouco intrigada – dizia que era para guardar bem nosso
sabonete, porque “os ratos do Vale do Jasmim são bem limpinhos e adoram comer
sabonete”. Natureza e pé no chão é uma coisa, mas eu particularmente não
gosto nada de sapos, aranhas, lagartixas, e mesmo que limpinhos, ratos – sejam
urbanos ou selvagens.
Por conta de uma reserva de última hora, tivemos que mudar de acomodação
no dia seguinte. Uma linda cabana de madeira no alto com vista
para o mar nos esperava... no andar de baixo um quarto extra, com poltronas de
um design bem interessante, super confortáveis e perfeitas para relaxar e ler
um livro. O banheiro era um show a parte – ao ar
livre, tinha uma pequena lona cobrindo somente a área da latrina, e de vez em
quando podíamos ver uns sapos (argh!) se refrescando no grande pote de cerâmica usado para armazenar água.
Sentei numa das poltronas redondas e meia hora depois, quando olho pra
cima vejo uma cabecinha com dois olhinhos me observando. Dei um baita pulo e na hora me lembrei
do ocorrido na cozinha no dia anterior. Corri para chamar alguém, mas pra não
dar muito vexame, disse calmamente: “Então moça, eu acho que tem uma cobra no
meu quarto”. Três jovens me acompanham, com todos apetrechos necessários,
incluindo um livro de fotos da fauna local para identificar o intruso. Chegando
lá, disseram: “Ah, isso não é nada não, é só um “gecko”, assim como
esse outro na parede atrás de você!”
Quando vi o tamanho do bichinho, não acreditei, mas ela completou: “Estes
são pequenos; você tem que ver um que vive na cabana aí do lado, é maior do que
meu braço!”.
A noite cai e noto um importante detalhe: não era possível fechar bem as
janelas, pois não tinham esquadrias, nem vidros, só uma persiana. Foi nessa hora que me dei
conta que o nosso único escudo protetor seria o mosquiteiro sobre a cama.
Os geckos poderiam ir e vir o quanto quisessem, a verdade é que o
intruso ali era eu, longe da minha selva de pedra. O que mais podia fazer a não
ser tentar relaxar e não me apavorar? Acho que a chance de um lagartinho me
atacar era bem remota, mas sempre tomava precaução para nem passar perto dessas
criaturas. Comecei a me acostumar. Eles fazem um som bem interessante, como se
estivessem rindo. E com certeza, deviam estar rindo muito de mim.
Aproveitei ao máximo a majestade da natureza presente nos dias que se
passaram. As caminhadas diárias e a paradinha diária no Led Zep Café no parque fizeram meus dias super especiais, mas as noites eram sempre um pouco desafiantes; foram as 4 noites mais mal dormidas de toda a viagem. A acústica que tinha no vale era
impressionante; podia-se ouvir tudo! Na primeira noite, com exceção de uns
grunhidos de um hóspede vomitando as tripas e outro fazendo sexo, pude apreciar
a diversidade dos sons. Foi incrível perceber o quão diferente é o som dos
animais ao anoitecer e ao amanhecer, uns chegam, outros se vão. Finalmente consegui dormir, e em estado
onírico, via uma pessoa tentando arrombar um carro enquanto soava um alarme de
carro. Acordei, mas o som continuava... não é que existe um pássaro que faz
exatamente o mesmo som de um alarme de carro e as 4 da
manhã!
Numa outra noite, nosso quarto foi invadido pelos famosos ratos do vale. Munidos de nossas lanternas debaixo do travesseiro, sob a telinha protetora, o que nos restou foi começar bater palmas e segundo a estratégia do meu querido marido: “vamos fazer uns sons de predador” pra espantá-los. Finalmente se foram, mas tive que segurar a vontade de ir ao banheiro a noite inteira pra não ter que descer e sair da cabana. Nas noites seguintes já comecei a sair no meio da noite com a lanterninha sem maiores problemas, mas confesso que todas as manhãs checava debaixo da cama pra ver se as ratoeiras ainda estavam vazias. A verdade é que no final o ambiente me parecia menos hostil lá fora.
Nesses dias em Kep refleti e me senti um pouco decepcionada de ver o
quanto me pareceu estranha essa conexão com a Terra. Como nossa vida nos grandes centros urbanos nos fez afastar
da nossa essência e de respeitar e conviver de forma mais harmoniosa com a
natureza? Além disso, estamos sempre na correria, agora vivendo rodeados com inúmeros
gadgets eletrônicos para nos deixar mais conectados do que nunca, mas ao mesmo
tempo sem tempo pra nos comunicar uns com os outros. A desconexão parece ser constante no nosso dia-a-dia, mas
será que a gente não enxerga isso tão claramente?
Não me importa não ter dormido bem por alguns dias. Mesmo com meus medos
tão bobos, tive que aprender a me soltar, e fui aos poucos me libertando para
interagir com aquele lugar o máximo que pude, porque afinal a gente só vive uma
vez.
Finalmente meu último dia chegou. Naquela tarde vejo os cachorros da
pousada passeando perto da cabana, e não é que um deles vem todo orgulhoso
segurando um rato pela boca: Ah, meu cãozinho herói! Aquilo pra mim foi um
presente, um sinal que minha última noite seria excelente, e mais uma
vez com os sons da mata embalando meu sono. E foi.
Na manhã seguinte, resolvemos trocar o verde pelo azul - foi nossa chance de passar mais alguns dias em Kep, mas desta vez numa pousada em frente ao mar. Na próxima postagem, eu falo um pouco mais a vila de Kep, um lugar bem especial.
(*) Tuk-Tuk é uma forma de transporte comum na Ásia; no Camboja é como se fosse uma carroça puxada por uma moto.